O legado que nossa mãe nos deixara

(Para minha genitora Maria Santana Rocha (Dona Celsa))* 15.07.1930 + 23.02.2012)

(Prof. Luciano Santana Rocha, poeta e contista penedense, ocupante da cadeira de número 07 da APLACC)

Só um romance descreveria a trajetória árdua, contudo feliz de minha mãe. Nasceu em Simão Dias-SE e veio habitar em Penedo nos anos idos de 1950, após ter conhecido meu pai, Manoel Sabino Rocha, popularmente conhecido como Sr. Né, terceiro franciscano, homem despojado de vaidades, trabalhador honesto, de boa índole. O conheceu quando o mesmo foi restaurar juntamente com o Mestre Antônio Pedro dos Santos, de saudosa memória, a matriz de Nossa Senhora de Santana em Simão Dias, no sertão sergipano.

Passou a vida inteirinha dedicada aos filhos, ao marido e às pessoas a sua volta, fossem as da rua, as da comunidade eclesial, no convento de Santa Maria dos Anjos, na vetusta Penedo, cidade histórica, às margens do Rio São Francisco. Lembro-me, quando pequenote, a gente encrencava na rua, que alguma vizinha corria, num bater de pestanas, e ia reclamar que um de nós havia discutido com um de seus filhos ou o xingado. Naquele instante, antevendo tudo, sabiamente ela respondia: “Deixe os meninos, mulher! Hoje eles encrencam e amanhã estarão de mãos dadas. Criança é assim mesmo. Nós adultos é que não podemos viver de mal- querências, criatura!” E assim ela ia resolvendo pragmaticamente os problemas da vida. Quando alguém lá em casa achava um objeto perdido, digamos assim, um relógio, outro qualquer, ela procurava saber onde foi e como foi o ocorrido. Se de casa saíamos para algum lugar, se íamos a alguma festa, distintamente dos dias de hoje, quando a maioria cria seus filhos à toa, avisávamos com quem andávamos e quando voltaríamos. Em suma, não vivíamos na permissividade moderna. Não havia internet, mas mesmo assim, fazia-se mister o controle. Lembro-me de quando ela afirmava “que para ser feliz não seria preciso ter que ter riquezas e bens, e que para tal bastava a pessoa amar e respeitar o direito dos outros não só de ir-e-vir, mas sobretudo de viver e de se ter múltiplas escolhas.” Sem necessariamente ser uma mulher culta, erudita, minha mãe tinha em si as sensibilidade e sabedoria que aprendera na vida, na convivência diária, no ideal do Poverello de Assis.

Quando alguém emudecia depressivo ou prostrava-se doente, ali estava definitivamente ela, de mangas arregaçadas para ajudar e só saía dali quando a pessoa restabelecia a saúde. Passasse pelo que passasse nunca a vi de mau-humor, ruminando, reclamando da vida; pelo contrário resignadamente afirmava: “Deus proverá”. E assim prosseguia, acordando no alvor das madrugadas ou debaixo daquelas chuvas torrenciais para de nós prontamente cuidar, arrumar-nos para a escola, fazer-nos o café matutino em seu fogão de carvão e muitas vezes até de lenha. Criou-nos na honestidade e sempre nos aconselhava. “Meus filhos, certo vive, quem certo anda”. “Quem o bem fizer, pra si lhe é”, “Diga-me com quem tu andas que eu te direi quem és”, entre outros inumeráveis adágios e conselhos.

Relembro ainda quando de casa saía que eu, um dos mais a ela apegados, lhe indagava qual o seu itinerário, e ela me respondia com um sorriso meigo e franco: “vou com as irmãs da Ordem levar a comida dos presidiários”. Noutro dia: “Vou visitar a irmã Judite que está doente e depois os idosos no Lar de São José e de São Vicente de Paula”. Ou ainda: “Vou com o pessoal para a campanha solidária em prol das crianças carentes do Alto da Pólvora.” Que legado este que nossa nos deixara! O da justiça e o da compaixão e acolhimento para com quem sofre! Por isso mesmo, mais do que merecido o poema póstumo, por mim composto no dia de sua partida para a terra da hogeneidade:

DESPEDIDA PARA MINHA MÃE

Relembro ainda e além de tudo a minha infância
Vivida pelos campos, pelos prados da vetusta Penedo.
Por aqueles becos, por aquelas ladeiras, mansas plagas,
Sob os afagos de minha mãe, sob seus ternos beijos…

Certo dia cresci, pro mundo bati estrada e depois
Regressei pro meu regaço, para as flores de minha janela.
Doirava um sol loirinho, não me esqueço de nada,
Nem dos conselhos de minha musa, dos doces beijos dela.

Hoje, homem feito vejo, choro e obviamente lamento
Minha bem-amada partir numa tarde de desencanto.
Contudo, na dor, junto a meus irmãos eis o desejo:

De, quiçá, um dia encontrarmo-nos paradisiacamente juntos
Numa eternidade de glória, de luz, de puro encanto,
Sem mais dores nem saudades, sem mais nenhum tormento.

Enfim, fica para nós seus dez filhos, seus rebentos, o mais puro e digno exemplo de alegria na pobreza, justiça no relacionamento social, acolhimento aos menos-favorecidos, simplicidade e humildade, paciência no sofrimento, disposição para o trabalho e, acima de tudo, de decência, partilha, luta por um mundo mais justo. E como retribuição, a partida com a consciência traquila de que se lhe cumpriu a missão dada por Deus. Passar por esse mundo e nada dele levar senão um espírito vivido na plena paz e no sumo bem.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *