Apologia ao poeta das rosas vermelhas: Maurício Gomes

Embora nascido em Pernambuco, Maurício Gomes, no entanto, elegeu voluntária e efetivamente seu berço natal a nossa querida, a nossa tão amada Penedo, burgo e cemitério alagoano de grandes poetas, onde fincou domicílio desde 1956, quando aqui aportou seu barco.

Autodidata, voluntariamente dedicado às letras, humanista, com extremo domínio à língua inglesa, de forma que, quando consultado, atendia prontamente já que a usava com extrema elegância e desenvoltura.  Divulgador e incentivador da Cultura em nossa terra, participando efetivamente dos eventos de relevância cultural, além das múltiplas atividades artísticas.

Fundador, juntamente com uma plêiade de entusiastas, da UTAP – União Teatral de Amadores de Penedo.

Ao lado do historiador Ernani Mero integrou o movimento em prol da restauração do Teatro Sete de Setembro, obra de inestimável valor histórico da nossa terrinha, há muito considerada o berço da Cultura alagoana. E em 1963 representou a cidade na organização do 1° Festival de Artes de Penedo.

Lecionou Inglês em conceituados colégios da cidade e na Faculdade de Formação de Professores. Na Emissora Rio São Francisco, criou e apresentou o programa: “A poesia fala ao coração”, evidenciando qualidades de declamador. Ainda na referida emissora ideou e manteve o programa “De tudo um pouco”, em que demonstrou grande versatilidade, pois abordava e debatia temas de interesse generalizado.

Chefiou o setor de Turismo e certames da Prefeitura Municipal em várias gestões e foi merecidamente reconhecido com o título de “cidadão penedense”, outorgado pela Câmara de vereadores local, além de ter sido o conselheiro, amigo pessoal e confrade do prefeito Raimundo Marinho.

O jornal penedense obteve extrema notoriedade quando, durante muito tempo, publicou os poemas do poeta em questão. Não teve em vida obra publicada, senão póstuma, pela Casa do Penedo, que trouxe a lume umas mostras  do lavor poético de Maurício Gomes, publicando Trevas e Alvorada, quarenta e quatro poemas de cunho simbolista que, segundo o próprio Francisco Alberto Sales, diretor da supracitada casa, nele, “capricho formal rima com poesia, além de conter três haicais no melhor estilo japonês”.

Ao percorrer-lhes os versos, o leitor vê-se envolvido numa atmosfera de ordem simbólico-espiritualista que se tornou rara desde o desaparecimento de Cruz e Souza, prócer máximo do simbolismo no Brasil.

Segundo o diretor da casa do Penedo, Francisco Sales, vale frisar que a publicação de tal obra não se trata de favor ao poeta, senão um relevante reconhecimento da qualidade poética expressa por ele em seus poemas, do poeta que ele significa, apologia justa ao penedense adotivo que possui uma meritória página de serviços prestados a nossa terra.

Lembro-me, quando criança brincava, livremente perambulava pela Rua Ulisses Batinga, para mim a “Rua dos poetas de Penedo”, o via passar, meio casmurro, meio sério, altivo, vestido numa indumentária social, terno preto-pérola ou azul-marinho, dirigia-se ao Teatro Sete de Setembro, à Faculdade ou à Prefeitura Municipal, e eu, em pura inocência, pueril que era, nada imaginativo de que, a posteriori, viesse-lhe substituir, ocupar-lhe a cadeira de n° 07, cujo patrono é o nosso poeta-maior Sabino Romariz, ambos de saudosa memória.

Aos domingos lá estava ele, em sua residência, naquela mesma supracitada rua, que também é minha de nascimento e de morada, por longo calendário, até quando bati definitivamente as asas para o mundo; via-o ali, perspicaz, devorando volumes dos mais variados e renomados escritores e poetas europeus, americanos, asiáticos… A exemplo de: Charles Baudelaire, Virgínia Wolff, Ezra Pound, Arthur Rimbaud, T. S. Eliot, Edgar Alan Poe, Omar Kayyam, Drummond, Mário Quintana, Vinícius de Morais, Manuel Bandeira, Graciliano Ramos, dentre outros poetas e exímios escritores do cenário, do estrelato mundial, refúgio do mesmo nos momentos de angústia e de duríssima solidão…

Lembro-me de um poema perdido, em que o poeta homenageava aquela lagoa da minha rua, em cujo o mesmo cantava: “Em minha rua há uma lagoa, toda entremeada de vegetação…”

Poeta de qualidade relevante na época foi escolhido pelo grupo para ocupar a cadeira de n° 07, cujo patrono é o nosso saudoso e genial poeta-maior Sabino Romariz, repito. Poeta assinaladamente simbolista, ambos poetas que deixaram como legado à minha e às gerações futuras, à posteridade que virá com certeza, eloquentes produções literárias, representadas em sua maioria por seus sonetos, que, em seus opúsculos trazem também os traços marcantes da pena do maior arauto, o Cruz e Souza, catarinense, expressão maior de tal vertente no Brasil. Tais sonetos de Maurício Gomes, alguns deles rubros, a exemplo do terceto abaixo:

“Nestes versos, eu sinto, há restos soltos,/De um coração que te ofereço, envoltos,/ Em pétalas manchadas com meu sangue…”

Tais versos além de transportar-nos do espaço geográfico e do tempo cronológico, fazem-nos imergir na angústia do “eu” poético, psicológico. Noutros leva-nos a entrar num vôo do imaginário por meio de metaforizações, em que busca traduzir sua inquietação, seu desassossegado estado anímico, por exemplo: quando homenageia seu filho em “viajante da agonia”, deixa transparecer a angústia própria do ser humano, a lembrar-nos das fogueiras, dos balões juninos, das estrelas do céu noturno como coisas esquecidas:

“E o viajante foi seguindo a esmo/à procura, no mundo, de si mesmo/ de momentos de amor, que foram raros…”

Em “pescador feliz” utiliza de tais metáforas (o mar), para falar-nos d’outro mar misterioso; faze-nos navegar num mar longínquo, escatológico, até, ao anunciar um outro país, como no conto: “A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa:

Descansa, agora, o pescador feliz,/No mar misterioso de um país,/Que fica além do azul do infinito…”

Da mesma forma que evoca o branco, ao cantar o ano novo, esperançoso, da mesma forma que seu patrono e agora o meu, a evocar, o primeiro, os lírios, as rosas brancas, e este a cantar-nos as diáfanas brumas:

“Este ano novo de esplendor se empluma,/com diáfanas vestes entre a bruma,/ de um tempo de paz e de esperança.”

Ainda no poema “Grande Mistério”, utiliza-se da metáfora, a sua Rosa, por isso ser denominado de “o poeta das rosas vermelhas”, para indagar acerca da eternidade, do destino da alma, do céu e do inferno, a duvidar até, qual o filósofo que “suspeita da própria suspeita”:

“Falou-me pensativa e pesarosa:/ — Não consegui saber d’alma da Rosa, Ela voltou ao pó de onde veio.”

Em “O Oleiro”, reflete acerca do paciente e terno labor do oleiro, a lembrar-se de Oman Khayyam, a afirmar que o barro “provinha de crânios e de mãos de mendigos”, tal poeta em questão o compara ao Grande Oleiro,  ao Arquiteto do Universo, o criador, e assim nos (en) canta versatilmente:

“Assim o grande Oleiro nos formou/Com sua mão potente transformou/a massa inerme e vil em ser consciente.”

Em “Paisagem Ribeirinha”, introduzido por Garcia Lorca, que fala das punhaladas das estrelas de noite no rio metaforiza as canoas e suas velas, utilizando-se também de prosopopéias, como se elas fossem pessoas “cansadas, tristes, sozinhas, caladas, inertes, adormecidas, embicadas…” Para mim umas de suas obras-primas.

“Mas a força do vento, borboletas douradas:/ Borboletas douradas das ribeiras,/do Rio São Francisco vão, ligeiras,/deslizando nas águas, calmas, frias…”

Ou em Canoas do São Francisco e em Toada do Velho Chico, prossegue com o mesmo sentimento:

“Canoas do São Francisco… Rio amigo,/Quantas lembranças guardarei comigo/dessas lindas paisagens de Penedo.”

Ou ainda:

“Velho rio, minhas mágoas, sepulte no verde mar!”

No poema “Pensamentos alados”, dedicado à filha Marilda, a falar das mãos dele que produzem, cita os versos do saudoso poeta, pastor e profeta D. Helder Câmara que num poema nos adverte:

“Ótimo que tua mão ajude o vôo…/mas que ela jamais se atreva/ a tomar o lugar das asas…”

Num sonetilho fala dum retrato, em primeira pessoa, ensimesmado, liricamente intimista, num tom meio meirelliano:

“Perdi o teu retrato… com ansiedade/saí a procurá-lo pelo chão/Só depois me lembrei que, na verdade,/tinha-o gravado no meu coração.”

É profundissimamente profundo nos três hai-kais bem ao estilo japonês: em “Solilóquio do pessimista”, em “fatuidade” e em “Impiedade”, respectivamente:

“Sentado medito: não sei por que tanto te amei: destino maldito”

“A moça bonita até parece que pisa estrelas no céu”

“Desfolhou o vento a rosa que era tão formosa,/

Sem constrangimento”

Ao referir-se a seus entes queridos e a figuras lendárias da cidade, mergulha-nos, transporta-nos a sentimentos de saudade, de lembranças e de relembranças que não voltam nunca mais! Como na homenagem à figura do popular Pilinha, à sua mãe, à esposa, à filha, respectivamente, vejamos:

“No qual se sente um velho soberano/do mundo que criou, num sonho insano/onde faltando-lhe a luz, falta-lhe a razão.”

“É que sinto no fundo de minh’alma/como foste tão forte, brava e calma,/enfrentando na vida os desenganos.”

“Esses versos são teus, minh’alma sente,/escrevi-os com amor e devoção.”

“Tu és um cisne alegre e venturoso/ no lago azul, profundo a deslizar…/Eu sou um cisne triste e pesaroso/ cansado de sofre e de penar.”

E quando se refere a sua querida Rosa, dá-nos um banho de lirismo, de ternura, bem como de beleza estético-literária, um amálgama de romântico-simbolismo; influências simultâneas de Vinícius de Morais, de Sabino Romariz e de Cruz e Souza, como em “A minha rosa”:

“A minha rosa existe. Sim, existe./ e enfeita minha vida de ilusão.

Nela tocar é uma profanação/ e mesmo um beija-flor nisso não insiste.” Pura poesia.

Nesses e noutros poemas o poeta reproduz estados afetivos, referência ao rio, a elementos comuns da cidade, à fotografia do real psicológico, em tons sugestivos, poéticos, conotativos, musicais, sinestésicos, aliterativos. Não só seus coetâneos tanto quanto a nossa geração e as que virão com certeza. Devemos, portanto, reconhecer o talento de um poeta que, malgrado não tendo aqui nascido, por essas plagas viveu e por elas apaixonou-se perdidamente.  No poema “Igreja da Corrente”, utiliza-se mais uma vez da prosopopéia, personificando-a, como se ela com sua vetusta beleza fosse alguém de carne e osso, a contemplar a outra inata beleza do Rio São Francisco:

“Com suas torres para os céus erguida/quais sentinelas firmes e indormidas/do São Francisco olhando a correnteza.”

No poema “Satânica” o poeta reitera a noção de sensualidade, em imagens metaforizadas; noutros, traça comovidos perfis dessa terra querida a que ele tanto amou, como se fosse sua terra natal. Formas da paisagem ribeirinha ou provinciana retidas, guardadas como ouro puro, diamante raro num cofre, onde todos podem abri-lo: basta folhear as páginas de algum de seus livros publicados, mesmo que póstumos. Poemas apresentados, retirados, catados, colhidos, organizados, aqui, ali e alhures por seu filho, o também poeta, Gomes Filho, em relevante coletânea. Eis uma lírica apologia que eu, de próprio punho o escrevi, um dia após a sua partida deste mundo, poema publicado na Tribuna Penedense no início da década de noventa, intitulado: “Epitáfio ao poeta da minha rua”.

Silêncio e melancolia são o que me restam

No fundo desta noite que encerra o mês de junho

E cala o poeta da minha rua e da minha infância.

O poeta que me embalou os sonhos de criança

Com poemas estampados no rodapé dos jornais da cidade,

“O poeta das rosas vermelhas.“

Hoje meu coração de poeta menor chora, lacrimeja,

Vagueia rua afora ao vê-lo metafisicamente

Cruzar calado a minha rua solitária e triste.

Um caçador de sonhos que se foi, com a madrugada,

Habitar a terra da homogeneidade.

Vou seguindo o meu caminho sinuoso,

Levando minha cruz, erguendo um ramo d’esperança

Ao poeta da minha rua e da minha infância!

Portanto, deixo aqui essa breve, sincera e não mais do que honesta homenagem ao saudoso poeta e confrade Maurício Gomes, de saudosa memória, ao meu antecessor, a ocupar a relevante cadeira de n° 07, agora após tantíssimo tempo ocupada efetivamente por mim, seu predecessor; cujo patrono é o nosso querido, saudoso e genial poeta-maior do Penedo, o digníssimo Sabino Romariz. Faz-se mister frisar que ora os defendo e os rememoro com a alma repleta de incomensurável júbilo; de poder nesse tablado, nessa digníssima tribuna, de maneira digna e respeitosamente representá-los. Muito obrigado.

BIBLIOGRAFIA

GOMES, de Oliveira. Trevas e Alvoradas, Casa do Penedo, Penedo – AL, 1992.

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