O hábito da leitura

FACULDADE PIO DÉCIMO

Por LUCIANO SANTANA ROCHA

 

O HÁBITO DE LEITURA: UM DOS PRÉ-REQUISITOS PARA UMA BOA PRODUÇÃO TEXTUAL

 

TRABALHO  APRESENTADO  AO  CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA COMO INSTRUMENTO DE AVALIAÇÃO FINAL DO MÓDULO DE PESQUISA II, MINISTRADO E ACOMPANHADO PELO PROF. DR. ANTÔNIO PONCIANO BEZERRA.

 

Aracaju, 2012

 

O HÁBITO DE LEITURA: UM DOS PRÉ-REQUISITOS PARA UMA BOA PRODUÇÃO TEXTUAL

Prof. Luciano Santana Rocha (poeta e contista. Pós-graduando em Língua Portuguesa e mestrando em Ciências Sociais.)

O hábito de leitura proporciona uma viagem visceral a quem dele se utiliza, não só nas obras-primas da literatura, como nos conhecimentos de uma forma em geral; torna-se qualidade exigida como pré-requisito. Sem isso é impossível que qualquer ser humano seja capaz de, em seu trabalho ou labor final obter êxito, de uma forma ou de outra.    Faz-se mister tal pré-requisito, sem necessariamente ter que escrever vislumbrando o mundo com as lentes do intelectual ou do escritor profissional propriamente dito.

Basta uma leitura atenta, densa, linha a linha, evidenciando como grandes escritores  do passado, como do presente obtiveram e continuam obtendo êxito, ou resultados apreciáveis por meio de um ou de outro método de escrever. Como sabemos, aprendemos a escrever a partir de exemplos, mas colhendo no âmago dos textos as expressões, refletindo e vendo como tratar a frase, o parágrafo, como e por que quebrá- lo, como conectar as orações entre si, tornar-se coeso, coerente, pouco repetitivo e claro. Como avaliar o impacto das palavras, como prender o leitor, e, no caso da criação literária, no romance ou no conto, como criar personagens e enredos interessantes; por que e de que forma criar o clímax, etc. Segundo Francine Prose, escritora e professora americana, explicitando acerca de suas idiossincrasias no processo, no ato de escrever ressalta:

“No  processo  de  me  tornar  uma  escritora,  li  e  reli  os autores de que mais gostava. Lia por prazer, primeiramente, mas também de maneira mais analítica, consciente do estilo, da dicção, do modo como as frases eram formadas e como a informação estava sendo transmitida, como o escritor estava estruturando uma trama, criando personagens, empregando detalhes e diálogos. E à medida que escrevia, descobri que escrever, como ler, fazia-se uma palavra por vez, um sinal de

pontuação por vez. Requer o que um amigo meu chama de “pôr as palavras em cheque” : mudar uma adjetivo, cortar uma frase, remover uma vírgula e pôr a vírgula de volta”.

Como pode alguém obter sucesso na produção textual sem, a priori, ter o hábito da leitura? Não é necessário ter-se em mãos regras imutáveis para chegar-se a resultados satisfatórios, uma vez que cada escritor institui suas próprias regras de criação em busca de atingir o podium da arte da palavra, da escrita, da potência verbal, do aplauso público. A leitura funciona como oficina literária, ginásio da produção textual, do bom e antigo sarau literário. Nos textos livrescos há ali as técnicas de redação, de composição e de narração. Ninguém nasce com o “dom”, ou a “genialidade” para o ato de escrever; pelo contrário, vai-se aperfeiçoando pari passo, aprendendo os critérios de avaliação da qualidade artística de um texto. As palavras-chaves nesse caminho são: liberdade, flexibilidade, prazer de ler o que se quer, obviamente, o que nos convém, a alegria de escrever e de ver o trabalho final, como um artesão ante sua escultura, o pintor frente a suas telas, o músico perante a sua ópera, sua peça musical. É lógico que as oficinas literárias, de redação e/ou produção textual, seja na escola ou na universidade são peças relevantes nesse processo, até como instituições que oferecem atividades curriculares e extracurriculares. No entanto, gostar de ler ainda continua sendo um critério central na mirada dos grandes mestres da escrita e da boa oralidade, mesmo que isso para uns, com suas idiossincrasias, pareça ter conotação polêmica.

Todas as tentativas de melhoria de produção verbal e escrita são válidas. O que importa é começar a tatear por um mundo escondido, encantado, apocalíptico da linguagem, que a chave é essa sem sombra de dúvida alguma. Sem essa porta de entrada para o conhecimento, eis o deserto, eis o caminho escuro, íngreme para se descobrir a fórmula exata, o caminho das pedras da produção escrita. Sem esse instrumento tão palpável,  torna-se  difícil  e  até  nebuloso  adentrar  o  recinto  do  saber  com  toda  a segurança.  Afinal,  o  amor  à  linguagem  não  se  ensina,  tampouco  o  talento  para  a narração de estórias, de contos, o fazer poesia ou o ato de poetizar brilhantemente. Distintamente da tabuada ou dos princípios da eletrônica, entre outros conhecimentos, a criatividade não pode ser ensinada de professor para aprendiz, é o que já estamos cansados de ouvir. Se pensarmos o contrário, estaremos praticando uma fraude criminosa, um crime bárbaro indubitavelmente.

Como exemplo claro disso é a maioria dos alunos da escola pública que, de praxe, recebemos a cada ano letivo, sem a mínima preparação para redigir claramente, objetivamente um bilhete sequer, sem que não cometa dois, três e até mais erros ortográficos; sem o alicerce básico para escrever um parágrafo com o mínimo de coesão e de coerência possíveis; mesmo que em linguagem simplória. Não são culpados por tais proezas. Há quem culpe o sistema educacional do país, os pais que não estimulam porque também são vítimas de tal sistema e, acima de tudo, de uma sociedade dividida em classes, de uns que conseguem um “lugar ao sol” no mercado de trabalho, os poucos leitores, que têm acesso à escola de qualidade e aos livros em sua maioria caros, e grande parcela populacional de analfabetos funcionais que mal sabe assinar o próprio nome. Marginalizados, exclusos, vítimas de certo mal-estar não só dentro dos muros dos “campi” educacional, como extra-sala de aula, bem longe dos corredores do conhecimento, por aí prosseguem. Restam-lhes, portanto, apenas atividades laborais as mais rudimentares, as mais simplórias e menos remuneradas, em grande parte, humilhantemente degradantes. Sobre isso se exprime a autora Babette Harper, em um de seus textos sobre a desenvoltura dos alunos de baixa renda na escola pública:

“Este mal-estar experimentado pelas crianças dos meios menos favorecidos pode desembocar numa atitude de recusa da escola, que se traduz em erros constantes, num mutismo dentro da sala de aula, em suma, na instalação progressiva do aluno numa situação de fracasso”.

Algo disseminado nos salta aos olhos. Não se chega afinal à escrita sem antes ter palmilhado pelos caminhos e descaminhos da leitura. Seja em casa, de modo autodidata, seja ao largo da escola, das Universidades, que nada nos vem aprioristicamente, como já foi supracitado. E leitura não significa apenas a habilidade para juntar letras, sílabas, vocábulos, frases soltas… Ler exige muito mais do que isso; é entender como está sendo tecido todo o texto, ultrapassar suas fronteiras e superfícies e inferir do ato de ler seu sentido profundo; que a uma maioria de leitores desatentos isso passa de forma despercebida.   Somente uma relação mais estreita do leitor com o texto poderá ulteriormente lhe conceder tal sentido amplo como um desafogo. Tanto ler quanto

escrever exige tamanha habilidade, tamanha sinergia entre ambos, leitor e autor (livro), já que se complementam simultaneamente. É por essa razão que, repito, são justamente nos textos bem redigidos que apreendemos e aprendemos os procedimentos linguísticos necessários para tal.

Consequentemente resulta o suporte de cultura que enseja a quem gosta de ler, a quem faz a escolha sensata do ato de ler e posteriormente de escrever, decide intermitentemente, alegremente buscar o caminho árduo, íngreme que é o de enveredar pela arte da escrita, pelo viés cultural; embora a cultura neste país seja submetida a um segundo plano, principalmente a Educação. Sobre isso li certa vez um artigo num livro sobre política cultural de Martin César Feijó:

“Vários motivos me levaram a este livro. Dois se destacam pelo grau de envolvimento: raiva e esperança. Explico-me: raiva por ver o quanto a cultura ainda é vista como artigo supérfluo em nossa terra; esperança por observar quantos movimentos culturais  têm  acontecido  em  nossa  história,  e  quase  sempre como forma de resistência e/ou transformação.” (…)

Segundo ainda Francine Prose,

“Para  qualquer  escritor, a  capacidade  de  olhar  uma  frase  e identificar o que é supérfluo, o que pode ser alterado, revisto, expandido ou – especialmente – cortado é essencial. É uma satisfação ver que a frase encolhe, encaixa-se no lugar, e por fim emerge numa forma aperfeiçoada: clara, econômica, bem definida.”

À medida que o leitor vai minuciosamente lendo palavra por palavra, frase por frase, período por período, parágrafo por parágrafo, vai paulatinamente assimilando não  só  os  conhecimentos  ali  contidos,  como  também  ponderando  cada  tomada  de medida ou de decisão feita pelo escritor. Seja o conteúdo escondido num romance, por

exemplo, Memórias do Cárcere, do Graciliano Ramos, ou num conto, Continho, de Paulo Mendes Campos, num livro didático ou noutros quaisquer, são na verdade poços de beleza e de prazer, aulas particulares retirados da leitura e obviamente resultante da arte  da  escrita.  O  certo,  evidentemente,  é  que  quem  escreve  aprende  a  fazer  algo distinto, em última análise, aprende a escrever com a prática do dia a dia, o trabalho árduo, a repetição de várias e exaustas tentativas e erros, o sucesso e o fracassar, acima de tudo com os livros que temos admiração. Ou seja, urge superar a visão acanhada, tacanha, medíocre da maioria das pessoas, acomodada a fazer sempre o trivial, o extremamente necessário, o obtuso, dar um salto de qualidade para o presciente prestando atenção aos sinais e advertências, a discernir o que serve e o que deve ser cortado, evitado, posto na lixeira.

É divertido até identificar tais empecilhos e fazer tais conexões entre uma coisa e outra, decifrar os códigos e encontrar o caminho das pedras, efetivamente. Manter enfim a comunicação com o autor e se autor, vice-versa; ter a sensação de se estar aprendendo de uma forma inteiramente nova, dotada de sentido, quando na verdade o que acontece é que o leitor nada mais está do que reaprendendo a ler com o antigo mecanismo que havia aprendido, e que já esquecera; e sente como o tempo e a idade drasticamente afetam a nossa compreensão. Por isso afirmarem que ler é remédio para combater as doenças neurológicas, como mal de Alzheimer, as cegueiras metafóricas ou literais, mesmo vivendo na era da ciência e de uma suposta profusão midiática, tecnológica. E com relação à Literatura pode-se afirmar a mesma coisa sabendo-se que poucas são as exceções de grandes produções literárias, na verdade.  Segundo o poeta e maior crítico literário americano Ezra Pound, “a Grande Literatura é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível”.

Ou ainda sobre formas de saturação da linguagem, exprime-se:

“A  saturação  da  linguagem  se  faz  principalmente  de  três maneiras: nós recebemos a linguagem tal como a nossa raça a deixou;  as  palavras  têm  significados  que  “estão  na  pele  da raça”; os alemães dizem, “wie in den Schnabel gewaschsen”: como que nascidas de seu bico. E o bom escritor escolhe as palavras pelo seu “significado”. Mas o significado não é algo tão definido e predeterminado como o movimento do cavalo ou do peão num tabuleiro de xadrez. Ele surge como raízes, com associações,  e  depende  de  como  e  quando  a  palavra  é comumente usada ou de quando ela tenha sido usada brilhante ou memoravelmente.” (In: O ABC da Literatura, p. 04)

Há explicação mais completa de que esta acerca do uso brilhante das palavras e até de sua saturação? Acredito que muito poucas. No mais o que vale aqui é que quaisquer citações usadas, de uma forma ou de outra, têm profunda relação com o ato de escrever, e de escrever bem, inclusive com figuras de retórica no intuito de embelezar e melhorar o discurso, o texto; vejamos outro exemplo do crítico francês P. Fontanier:

“Irão nos perguntar se é útil estudar, conhecer as figuras. Sim, responderemos, não poderia sem mais útil e nem mesmo mais necessário   para   os   que   querem   penetrar   no   espírito   da linguagem, aprofundar-se nos segredos do estilo […]. Não procurar conhecê-los seria, portanto, renunciar a conhecer a arte de pensar e escrever no que tem de mais precioso e delicado: o que seria quase o mesmo que renunciar a conhecer as leis, os princípios do gosto.”

Ou ainda sobre a arte da escrita, o que afirma Jean Paul Sartre na obra O que é a Literatura? Vejamos o que e o autor fala acerca do calar ou do deixar passar em silêncio diante de determinado aspecto do mundo, se fala disso e não daquilo; se muda tal coisa e não outra:

“Nada disso impede que haja a maneira de escrever. Ninguém é escritor por haver decidido dizer certas coisas, mas por haver decidido dizê-las de determinado modo. E o estilo, decerto, é o

que determina o valor da prosa. Mas ele deve passar despercebido. Já que as palavras são transparentes e o olhar as atravessa, seria absurdo introduzir vidros opacos entre elas. A beleza aqui é apenas uma força suave e insensível.”

Portanto,  diz  Prose  “que  o  truque  para  escrever  bem  é  ler  –  de  maneira cuidadosa, refletida e lenta”. Às vezes é preciso desacelerar o ritmo, sem pressa na corrida. Como se diz no adágio: “devagar e sempre”. Não basta ler se não se lê o que se gosta, respeitando-se as idiossincrasias e criatividade tanto do leitor quanto do escritor, este último muitas vezes tido como abençoado com sabedoria e gênio, magnânimo como os mortos; capaz de desenvolver ritmo, enredo, trama, fantásticos, sem se levar em  conta  anos   a  fio  de  trabalho  árduo,  entediante,  prazeroso  que  seja.  Sua engenhosidade e inteligência são na verdade provenientes de sua prática de leitura, de sua compulsiva vontade para tal, de sua bagagem cultural, etc.

Para se suplantar os próprios limites nessa empreitada cultural, de crescimento até a busca do podium, supracitado no início do texto, urge labor intelectual, procura de estética, da sonhada perfeição na peleja com as palavras. Pressupõe-se a passagem pelas labirínticas veredas escuras que exige o ato de escrever, para se deslindar, após mil e uma tentativas, a saída do túneo, a travessia dos desertos infindos, a superação dos dissabores e dos próprios limites, enfim o encontro com o oásis literário, a subida a tal tablado.

Enfim, sem  gostar de ler, fica praticamente impossível entender-se com os autores e seus personagens ficcionais, seus gestos e atitudes, sua linguagem, ás vezes até neológica, com a genialidade de seus criadores, com as pessoas do mundo global. Portanto é necessária a conexão com as obras não só de arte, a mínima avidez para a leitura, por mais prosaica que seja; tal pré-requisito é plausível, senão convincente. Torna-se desastroso querer-se granjear a opinião de vivos e mortos sem tal esforço, inexoravelmente, sem enfadonhas sessões de exercícios para a produção textual de uma forma geral, sem a busca da fluidez na leitura e posteriormente na escrita, num sentido de competência e controle da situação, sem afligir-se, obviamente, transformando tal ato num ato de prazer. Sem tal proeza, faremos um desserviço a nós mesmos, não chegando a lugar algum, senão a um beco sem saídas.

BIBLIOGRAFIA

PROSE, Francine. Para ler como um escritor (Um guia para quem gosta de livros e para quem quer escrevê-los). Zahar, Jorge Zahar editor, Rio de Janeiro, 2006. p. 15.

HARPER Babette ET alii, Cuidado criança! São Paulo, Brasilense, s/d. p. 75. FEIJÓ, Martin César. O que é política cultural. São Paulo, Brasiliense, 1985. P. 7.

POUND, Ezra.   ABC da Literatura. Editora Cultrix, São Paulo, edição número 12, 1997, p. 04

FONTANIER, P., Les Figures Du discours, Paris, Flammarion, col. “Champs”, 1977.

ROGER, Jérome, A Crítica Literária,  Rio de Janeiro, DIFEL, 2002, p. 25.) SARTRE, Jean Paul. O que á a Literatura? Editora Ática,  São Paulo, 1989., p. 22. RAMOS, Graciliano, Editora Recorde, Rio de Janeiro/ São Paulo, 2004.

CAMPOS, Paulo Mendes. Edições de Ouro. In: Supermercado. Rio de Janeiro, 1976, p.53.

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